Sem mas.

Sem mas.

13 de julho de 2014

Azul

                Ele acordou, não quis se levantar. A cabeça doía e o corpo também, tinha na boca um gosto ruim, o hálito cheirava a bicho morto. Poucas lembranças da noite anterior. Algumas horas, ou minutos, olhando o teto e finalmente se levantou. O tempo é sempre relativo durante uma boa ressaca. Caminhou até a cozinha e abriu a geladeira, tão vazia quanto seu estomago. Tomou dois dedos de vodca, fumou um cigarro, chutou as roupas vomitadas para o lado e ligou a vitrola.
                Achava os discos mais humanos. Aquele chiado antes da música começar lembrava peixes fritando. Dava uma sensação gostosa de ansiedade. Isso sem comentar que Blue da Joni dava um tom especial para aquela tarde.
                Não é questão de ter evoluído, é que o som vinha melhor de lá, parece mais pessoal. Faltava pouco para escurecer, mas mesmo aquela pouca claridade do crepúsculo incomodava seus olhos, tão vermelhos quanto os dos coelhos no petshop da esquina.
                Olhou a carteira e percebeu que ainda restavam alguns trocados, precisava comer. Mas também precisava de vida e um pouco de paixão. O bom de Joni Mitchell é que não dá para dedicar a música a ninguém, pelo menos não sem estar apaixonado por, pelo menos, quinze anos. É o tipo de artista que se aproveita tudo, principalmente a voz. Aos poucos o sol sumia por entre as construções, nessa cidade é legal morar acima do terceiro andar, a visão será sempre privilegiada.
                O vento do inverno batia em seu peito, arrepiava a coluna, a vodca trabalhava esfriando o interior. Aquecia apenas o necessário. Tem dias que o silencio é simplesmente ensurdecedor.
                Pensava no almoço de amanhã, no trabalho de sexta, na gorjeta da semana passada, na cerveja de terça, na cigana que lia mãos na praça, nos pássaros que pareciam sem rumo, no sol que voltaria cedo no dia seguinte. Evitava pensar no amor e na própria vida.
                Queria estar longe.
                Mas principalmente, longe de si. O ódio próprio é um ótimo combustível para aqueles sem motivação. Mais uma dose de vodca, o lado B do vinil, mais um pouco de chiado para abafar o som do pensamento.

                Mais duas doses e estará apagado na cama, por entre lençóis e cobertores. Só. Como há meses tem acontecido. 

7 de julho de 2014

Desmoronar

            Por entre destroços, sejam do meu coração ou da construção.
            Por entre quedas, hora da Bovespa hora do meu humor.
            Por entre cidades não tão maravilhosas e ônibus apertados.
            Por entre shows legais e pessoas distantes.
            Por entre cinegrafistas baleados e alunos reprimidos.
            Eu continuo vivo.
           
            Ouvi aquela velha canção que dizia: “Apenas o amor pode quebrar seu coração”
            Estou envelhecendo.
            Tive amigos que não mais vi.
            E amores que não vivi.
            Por vezes enxerguei o mundo desabando, como aquele viaduto.
            Quantos dias se passaram sem que eu sentisse minha espinha sendo estraçalhada por opiniões que não pedi?
            E por quantos dias mais terei que sentir a mesma coisa?
            Por vezes me defendi para que não quebrassem meu espírito.
            A alma pede clemência.  
            Mesmo assim, continuo vivo.
            Pensei ter o coração de ouro, mas por entre todas as mudanças e as minhas entranhas não vejo nada além de um pouco de alumínio.
            Sinto meu sangue se engrossar aos poucos, como se estivesse se transformando em veneno.
            Inunda meus olhos, meu peito, minha vida.
            Não sou mais tão jovem.
            Tenho parentes que nunca mais vi e alguns que nunca mais quero ver.
            Por inocência, ou escolha, sigo vivo e acreditando que apenas o amor pode quebrar meu coração.
            Exatamente como dizem naquele velho folk.