Sem mas.

Sem mas.

13 de julho de 2014

Azul

                Ele acordou, não quis se levantar. A cabeça doía e o corpo também, tinha na boca um gosto ruim, o hálito cheirava a bicho morto. Poucas lembranças da noite anterior. Algumas horas, ou minutos, olhando o teto e finalmente se levantou. O tempo é sempre relativo durante uma boa ressaca. Caminhou até a cozinha e abriu a geladeira, tão vazia quanto seu estomago. Tomou dois dedos de vodca, fumou um cigarro, chutou as roupas vomitadas para o lado e ligou a vitrola.
                Achava os discos mais humanos. Aquele chiado antes da música começar lembrava peixes fritando. Dava uma sensação gostosa de ansiedade. Isso sem comentar que Blue da Joni dava um tom especial para aquela tarde.
                Não é questão de ter evoluído, é que o som vinha melhor de lá, parece mais pessoal. Faltava pouco para escurecer, mas mesmo aquela pouca claridade do crepúsculo incomodava seus olhos, tão vermelhos quanto os dos coelhos no petshop da esquina.
                Olhou a carteira e percebeu que ainda restavam alguns trocados, precisava comer. Mas também precisava de vida e um pouco de paixão. O bom de Joni Mitchell é que não dá para dedicar a música a ninguém, pelo menos não sem estar apaixonado por, pelo menos, quinze anos. É o tipo de artista que se aproveita tudo, principalmente a voz. Aos poucos o sol sumia por entre as construções, nessa cidade é legal morar acima do terceiro andar, a visão será sempre privilegiada.
                O vento do inverno batia em seu peito, arrepiava a coluna, a vodca trabalhava esfriando o interior. Aquecia apenas o necessário. Tem dias que o silencio é simplesmente ensurdecedor.
                Pensava no almoço de amanhã, no trabalho de sexta, na gorjeta da semana passada, na cerveja de terça, na cigana que lia mãos na praça, nos pássaros que pareciam sem rumo, no sol que voltaria cedo no dia seguinte. Evitava pensar no amor e na própria vida.
                Queria estar longe.
                Mas principalmente, longe de si. O ódio próprio é um ótimo combustível para aqueles sem motivação. Mais uma dose de vodca, o lado B do vinil, mais um pouco de chiado para abafar o som do pensamento.

                Mais duas doses e estará apagado na cama, por entre lençóis e cobertores. Só. Como há meses tem acontecido. 

7 de julho de 2014

Desmoronar

            Por entre destroços, sejam do meu coração ou da construção.
            Por entre quedas, hora da Bovespa hora do meu humor.
            Por entre cidades não tão maravilhosas e ônibus apertados.
            Por entre shows legais e pessoas distantes.
            Por entre cinegrafistas baleados e alunos reprimidos.
            Eu continuo vivo.
           
            Ouvi aquela velha canção que dizia: “Apenas o amor pode quebrar seu coração”
            Estou envelhecendo.
            Tive amigos que não mais vi.
            E amores que não vivi.
            Por vezes enxerguei o mundo desabando, como aquele viaduto.
            Quantos dias se passaram sem que eu sentisse minha espinha sendo estraçalhada por opiniões que não pedi?
            E por quantos dias mais terei que sentir a mesma coisa?
            Por vezes me defendi para que não quebrassem meu espírito.
            A alma pede clemência.  
            Mesmo assim, continuo vivo.
            Pensei ter o coração de ouro, mas por entre todas as mudanças e as minhas entranhas não vejo nada além de um pouco de alumínio.
            Sinto meu sangue se engrossar aos poucos, como se estivesse se transformando em veneno.
            Inunda meus olhos, meu peito, minha vida.
            Não sou mais tão jovem.
            Tenho parentes que nunca mais vi e alguns que nunca mais quero ver.
            Por inocência, ou escolha, sigo vivo e acreditando que apenas o amor pode quebrar meu coração.
            Exatamente como dizem naquele velho folk.  


29 de junho de 2014

Céu, sol, sul.

                Meu avô costumava trabalhar como operador de sondas em uma mineradora no interior de Goiás. Durante boa parte da infância eu, que era seu vizinho, esperava sua chegada. Por volta das cinco e meia da tarde, ele descia da Kombi branca encardida, com sua garrafa térmica de café e outra de água embaixo dos braços, um cigarro pendurado na boca e as botas cheias de terra. Passava por mim, colocava o cigarro entre os dentes e esboçava um sorriso.
                Era engraçado. Dos netos sempre fui o que menos recebia ofensas, chineladas e palavrões. É que na verdade eu nunca os recebia. Isso era privilégio dos outros. Comigo a coisa era diferente. Nossa relação se baseava em chá mate aos domingos de manhã, chimarrão nas calçadas durante os sábados de inverno, piadas sujas e lições sobre como preparar um bom churrasco ao som de Borghetti.
                Ao contrário da minha vó, ele perdeu cedo o sotaque gaúcho. Só não perdeu os costumes. Apesar de não ter metade do indicador, amolava facas como ninguém, ainda hoje não achei alguém tão bom quanto ele no violão e é certo que a voz grave, rouca por conta dos cigarros, ajudava a dar um tom interessante aos boleros que saíam daquele velho instrumento. Nada vence a supremacia do tempo que não perdoa ninguém, muito menos aqueles que vivem para o prazer. Meu avô era um desses homens.
                Contam em histórias, que ele era boa praça, fazia piadas e gostava de uma farra como poucos. Era do tipo mulherengo. Sempre foi alto, o trabalho ao sol lhe rendeu uma cor morena e os cabelos negros destacavam bem o rosto. Meu avô era o tipo de homem que desprendia pelo menos um olhar das moças por aí. Ele se aproveitava disso.
                Sempre me pareceu uma pessoa feliz.  
                A aposentadoria foi sua ruína, o pobre coitado passava os dias em frente à TV, com os olhos fixos, sem vida, em algum filme ruim, um programa sertanejo, eventualmente algum jogo da série B. Saía do sofá apenas para me buscar nas aulas extras que fazia, isso se fosse extremamente necessário. Acho que ele só chegou a ver uma das minhas competições no Tae Kwon Do, confesso que eu ria da maneira como ele contava que me viu batendo em alguém. Eu somava pouco mais de dez anos e presenciei o início do fim.
                Descobriu-se, agora não me lembro como, que ele desenvolveu uma doença degenerativa nos rins, aposto minha coleção de vinil que a vida desregrada é a culpada. A idade impedia de fazer o transplante, hemodiálise seria vital. Ele fez. Com o passar dos anos definhava, como um boxeador que escolhe perder, mas sem abandonar a luta. O velho agia como se merecesse a punição que estava recebendo de uma força superior. 
                Se instalou em uma tristeza deprimente.
                A família, é claro, se desesperou. Era como uma histeria coletiva. Todos em prol de uma causa perdida. Ele mesmo já havia abandonado a luta, inclusive se ainda está nela é por conta dos familiares.  Os remédios da hemodiálise, a má alimentação e a falta de atividade física fizeram com que também desenvolvesse uma doença degenerativa no cérebro, além de atrofiar os músculos.
                Hoje ele é incapaz de dar quatro passos sem cair, mas ainda fica com o olhar fixo na TV. Eu já não sou seu vizinho, há anos que me mudei, culpa de algumas escolhas que ainda não decidi se boas ou ruins. Minha ausência fez com que ele me esquecesse. Pelo menos das ultimas seis vezes que nos encontramos ele me reconheceu em apenas uma. É um pouco triste, mas no final das contas não seremos todos esquecidos?
                Desta última vez, quando estive lá, ele brigava com o fisioterapeuta. Não queria fazer os exercícios. Acabada a sessão, eu o coloquei na cadeira de rodas, levei até o banheiro e depois das formalidades fisiológicas devidamente executadas e limpas, sentamos na sala e ficamos a conversar. Ele, com muita dificuldade, divagava sobre tudo e eu, em resposta, disse que compraria uma arma de água e encheria de molho de pimenta, seria a maneira dele se proteger de chatos e médicos irritantes. Após uma breve gargalhada interrompida por uma tosse seca, ele me disse, com dificuldade, segurando uma das minhas mãos: “Seremos dois contra o mundo” e riu de novo.
                Consigo entender toda essa angustia afinal, você ficaria tranquilo se a cada dois meses um amigo de hemodiálise morresse ao seu lado?
                Hoje o violão que era dele me acompanha nas madrugadas insones, a mania do cigarro pendurado me ajuda sobreviver aos amores mal resolvidos, ainda faço churrasco como ele e mesmo que não o tenha esquecido, nunca concordei tanto com essas palavras.

                Pois é, grande homem, seremos sempre dois contra o mundo. 

1 de junho de 2014

À sua memória



                É verdade quando dizem que nunca esqueceremos nossa primeira. Há semanas que não pensava nela. Nesse domingo, por ironia do acaso, acabei esbarrando em algumas fotos nossas. Não tínhamos muitas e que eu me lembre só existem duas.
                Sabe, ela foi minha primeira mulher.
                Apareceu alguns dias antes do meu aniversário de vinte anos. Por mais que a barba por fazer e as noites mal dormidas me dessem uma aparência mais velha, eu era apenas um garoto. Um menino que escrevia palavrões em cada conto para amenizar a raiva e acreditava que destruir era mais importante que construir. Moleque que só pensava em foder garotas, escrever, encher a cara e morrer cedo – live fast die young – afirmo que ninguém pode me julgar por isso.  
                Engraçado que, daqueles anos, me restaram poucas lembranças. Ela ainda está latente em minha mente. Foi uma noite estranha. Uísque vagabundo, coisas demais na cabeça, mentiras demais na boca.
                Nunca cheguei a dizer, mas quando entrei no bar, aquela noite, percebi sua presença quase de imediato. Claro que uma mulher desse tipo jamais passa batido. Grandes olhos bem desenhados, o rosto de uma simetria única, cabelos escuros e a voz aveludada que com o restante do sotaque gaúcho acariciava meus ouvidos a cada nova palavra...
                Olha... Ela é uma mulher de classe. Garanto que sempre foi. Verdadeira mademoiselle com o sorriso capaz de fazer qualquer pessoa consciente perder o juízo. Completamente opostos. Ela já estava com a vida pronta no alto dos seus trinta e poucos anos, enquanto eu ainda me virava com bicos nos finais de semana e bebia vinhos de cinco reais para burlar a cruel realidade.
                Na época, estava prestes a terminar meu primeiro livro. Acreditava que seria uma obra prima, era uma merda. Depois dela o reescrevi sete vezes e ainda hoje continua um belo pedaço de merda.
                Por algum motivo que nunca cheguei a compreender direito, ela se interessou por mim e estava com feridas recém abertas, um desses relacionamentos intermináveis que eventualmente acabam e deixam marcas. Não sei ao certo como funcionam. O máximo que já me mantive com alguém foram seis meses, imagino que quanto maior o tempo pior a dor.
                Ela me olhou, puxou assunto. Me usou para afastar um desses idiotas que acreditam no poder máximo do dinheiro, segundo ela, ele não valia tanto a pena assim. Era bom demais para ser verdade. Isso não acontece comigo.
                Disse alguma coisa, ela respondeu, saímos e que eu me lembre, queria passar alguns meses naquela conversa. Que gargalhada gostosa. O cheiro do cabelo era bom, cheirava como um lar.
                Nos beijamos.
                Quando uma mulher maravilhosa, como essa, é gentil o suficiente para te beijar, você tem que beijá-la de volta. Quem sabe onde um beijo pode te levar? Aquele nos levou a outros mais quentes, carinhos contidos, carícias explicitas.
                Queria poder pagar, de alguma forma, a meia calça que, sem querer, acabei rasgando. Naquela noite eu mal tinha o dinheiro do taxi. Não que hoje seja diferente, eu ainda sou apenas um rapaz latino americano, vindo do interior, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes.
                Ela se foi.
                Como todas as garotas que estiveram presentes em minha vida antes e depois dela. Queria ter tido coragem de ter enviado o que escrevi, de ter pedido para ficar mais quando finalmente voltou alguns meses depois. Até a pele dela pedia um toque diferente, era incrível.  
                É só que, vejam bem, o que uma mulher dessas faria com um escritor fadado ao fracasso como eu? Sei que todos amam uma boa causa perdida, mas ela tem um futuro tranquilo, quanto a mim? A única coisa calma em minha vida foi Palomita, uma gata de estimação que morreu ao atingir os seis meses de idade.
                Só tenho a agradecer essa breve aparição, afinal, se não fosse ela, só o bom Jeová saberia me informar quando de fato conheceria uma mulher de verdade. Não que ache ruim as garotas com quem me envolvo. Elas são maravilhosas, só não possuem, ainda, a personalidade marcante de uma mulher, aquela sutileza nas pequenas imperfeições que aparecem de maneira charmosa, o riso gostoso que te faz querer ficar na conversa por anos, o cheiro bom que vem do cabelo, do tipo que te faz querer ter um lar. 
                Não que seja um problema, porém, algumas garotas, às vezes, aparentam estar mais perdidas do que eu. Sem sombra de dúvidas ela será minha melhor lembrança daquele ano.   

                

25 de maio de 2014

Não é ilusão

1.      Mutualismo: Duas espécies são beneficiadas e podem viver independentemente ou trocar de parceiro.


           É quando dois indivíduos encontram- se e se reconhecem quase que de imediato. É obvio que ambos poderiam viver tranquilamente longe um do outro, mas escolhem não o fazer.
           Vão correr um ao lado do outro. Apesar de todo medo, de toda bagagem, apesar de todos os traumas e paranoias, manias irritantes e saudades absurdas.  
            Não é parasitismo.
           Mutualismo não é ilusão, não é como se falássemos de amor e fadas. Ela acaba sendo o combustível dele e ele a salvação dela. Quando dizem sim, mesmo que sejam de espécies diferentes, os dois seguem e saram toda dor um do outro.
           Ela é desse tipo que aparenta ser patrocinada por todas essas marcas caras, Apple, Carolina Herrera, Chanel e até mesmo a armação dos óculos parece ter saído de um catálogo de moda. Ele ainda tem a mesma jaqueta de couro a pouco mais de cinco anos e umas duas calças jeans, que costumavam ser azul, a coisa mais cara que possui é um uísque importado, presente de aniversário de uma amiga desavisada. Mesmo tão opostos, se reconheceram dispostos a preencher o vazio um do outro.

           Essa é a graça do mutualismo. Ele foi, durante muito tempo, como aquele enfeite no quarto dela enquanto ela não passava de um sonho bom, até que resolveram viver lado a lado. Já estiveram separados, porém os benefícios de quando estão juntos é algo que não se pode abrir mão com tanta facilidade assim. 

18 de maio de 2014

Não devia, mas fiz mesmo assim.

                Eu deveria ter ficado em Catalão. Nunca devia ter saído da psicologia, se bem que não devia nem ter começado o curso. Podia ter feito medicina ou alguma engenharia, pena eu não ser arrogante o suficiente.
                Deveria ter apostado no seguro, ficado naquela cidade lenta, mesmo que eu me sentisse tão depressa.
                Não devia ter me deixado por aí. Você nunca teria me encontrado, se eu tivesse ficado quieto na minha. Pode parecer que eu não me importo, e às vezes não me importo mesmo. Inclusive tem dias que eu não quero saber de me achar. Nunca teria dado certo na engenharia.
                Eu não devia ter aberto minha vida para aquela ex. Não devia ter deixado que visse a bagunça. Ela entrou, pegou o que queria e foi embora. Não me achou em meio aos destroços,  cobertores e filmes. Deve ter ficado com medo das fotos e garrafas vazias espalhadas por aqui.
                Já passou por algo assim?
                Eu não devia deixar outra pessoa entrar, mas estou fazendo mesmo assim. Talvez ela seja mais uma que não vai me encontrar por aí, pode ser que seja do mesmo tipo da outra. É que eu apenas vejo tanta vida pela frente, tanto para tirar do papel.
                Eu não deveria te procurar no fim do dia, contar histórias que não conto para ninguém e que você não quer ouvir. Escrever coisas que você nunca vai ler.
                Eu devia me proteger mais.
                Juro que estou repensando se devia me deixar por aí, esperando um dia em que a vida vai deixar os contratempos para depois e você, estando só, vai acabar por me encontrar de novo.

                Pena você desatar todos os nós que insisto em criar. 

11 de maio de 2014

Como água

                Já contava pouco mais de um mês desde que havia pisado pela ultima vez no tatame. Sentia falta, muita falta. É difícil lidar com toda essa raiva acumulada e de uns tempos para cá minhas mãos tremiam incessantes. Descargas de adrenalina se tornaram comuns e eu estava mais irritado que o normal.
                Sabia exatamente o que era preciso ser feito.
                Esse semestre está caótico, muito trabalho, pouca diversão. Responsabilidade demais acaba com o homem. Estava sem tempo até para mulheres, talvez isso explique os textos melancólicos. O fato é que mandei toda burocracia que me deprimia para o inferno, peguei minhas luvas e fui para academia.
                Devo ter chegado por volta de sete. O pior horário da terra. Depois das cinco da tarde a academia fica lotada, pessoas se apossam dos materiais e começam a bater papo. Eu sempre fui muito direto. Cheguei, fiz, fui embora. Nada de embromar e hoje precisava descarregar. Como uma arma que não aguenta mais munição, esse era eu. Olhei para o tatame, suspeitava que Ítalo estaria lá. Ele sempre está.
                Ítalo é um filho da puta que mede cerca de dois metros e dez centímetros, tem duzentos e quinze quilos de puro músculo. O rapaz não sabe treinar, isso já é confirmado. Ele leva muito a sério todos os sparrings e essa noite estava no tatame. Já era figura carimbada na academia, só os novatos se atreviam com ele, os coitados saíam com o nariz quebrado, na melhor das hipóteses. Por ironia do destino, meu horário nunca bateu com o dele. Pelo menos até hoje.
                Me sentia motivado.
                A falta de amor a vida me deu coragem, o tempo longe do ringue mudou algo. Aqueci e fui à beira de onde as lutas ocorriam, reparei sua técnica enquanto colocava minhas bandagens. Não é segredo,  ele desprende muita energia de início, acaba se cansando rápido.
                 Faz parte da história da humanidade, até o bom Jeová apreciava lutas e eventualmente apostava nos azarões. Olha o pequeno Davi, se não fosse sua técnica, e um pouco de sorte, Golias jamais teria sucumbido, sem falar de Daniel e todos aqueles leões. As pessoas gostam do impossível.
                Ítalo pode levar vantagem por ser maior e mais forte, mas eu sou mais rápido.
                Respirei.
                Jogar fora o ar sujo é essencial, é vital ficar leve antes de qualquer confronto. Esvaziar a mente pode ser o que vai salvar sua vida na hora do aperto. O cara não tinha piedade, eu seria uma presa fácil. Uma coisa que pessoas altas treinam pouco são golpes de curta distância. Compensam essa falha com bases bem estruturadas, seria dureza derrubá-lo.
                Olha, chefia, lutar é igual viver. A vida vai bater sem dó, resta a você decidir quais golpes levar. Eu sabia que com ele seria assim.
                Começamos.
                Eu, um Davi de um e oitenta e cinco, sessenta quilos. Ele, um Golias de dois metros e uns poucos centímetros, duzentos e alguns quilos.
                O ar entra e sai pelas minhas narinas. Abrir a boca pode significar dizer adeus aos dentes, e além do mais, é bom manter um ritmo para respiração. Ela faz toda diferença no resultado final. Dancei com ele pelo tatame por alguns minutos, não conseguiu me acertar um golpe sequer. Nem mesmo uma simples canelada. Sentia que suas mãos estavam começando a pesar, ele já não conseguia manter a guarda alta. Ótimo. Precisava me aproximar, levei um cruzado de esquerda e desviei do gancho, a joelhada passou raspando, enquanto encurtava a distância sentia o sangue preencher minha boca. Acertei um soco na altura das costelas, os braços abaixaram, a boca do estomago era minha e o rosto também.
                Primeiro você acaba com a capacidade de respirar, dois socos, um no centro e outro na lateral do abdômen. Sem isso ele se cansa mais rápido, a guarda não vai ser tão eficaz. A base ainda está firme, mais alguns golpes na lateral e o chão será seu destino. Estar certo as vezes é maravilhoso. Garanto que nunca acertei um rodado com tanto gosto na cabeça de alguém como fiz essa noite.
                Foi um nocaute memorável na história da academia.
                O bom de lutar é não pensar em nada. Juro que minha mente estava vazia, meus olhos focavam nas oportunidades. Pela primeira vez eu percebi o potencial da raiva, o alcance que a falta ou o excesso de controle tem.
                Guardei minhas coisas, desenrolei lentamente a bandagem enquanto Ítalo se recuperava, limpei o suor da testa e troquei de camiseta. Tomei um belo gole de água e sangue. Caminhei rumo à porta. Ouvi enquanto saía: “Boa luta, cara! Vou querer revanche...”
                Por mim tudo bem, mas não hoje. Agora eu só quero uma cerveja.  
                 


7 de maio de 2014

Boa noite, Margarida

                Pois bem, Margarida, eu avisei que o fim aconteceria. Eu não o queria. Não aquele fim. Veja que o arco-íris não mudou de cor, a gasolina subiu de preço e as flores já desabrocharam. Você esqueceu meu endereço.
                Fim. Eu não queria aquele fim.
                Não trocamos mais olhares em apartamentos, nem mensagens. Você teve outros, eu fiquei só. Não há mais almoços despretensiosos, ou cafés da manhã preguiçosos. Eu era o real, você a fantasia. Sem beijos com gosto de suor, não há mais sexo no sofá, seriados, pizzas. Você não quer mais me ver.
                Não reparei, mas as flores já desabrocharam.
                Meu tempo está chegando ao fim, é preciso sair, arrumar meio nessa amarga vida. Mas veja você, o arco-íris não mudou de cor, não há mais beijos de suor, nem camas repartidas, sem discussões políticas e banhos quentes.
                Foi o fim.
                Não o fim que queria, mas ainda sim, vou esquecer seu endereço e a gasolina vai cair de preço. Talvez eu tenha outros começos, mas vou sempre me lembrar do fim. O nosso fim.
                Eu vou partir.
                Não há garantias, nem meios, mas vou tentar curar essas feridas.

                Margarida, juro que curarei essas feridas da amarga vida, mesmo que você não mais se lembre de mim, do nosso fim.  

4 de maio de 2014

Nocivo

                Agora é sério. O problema é definitivamente comigo. Tenho passado pouco tempo olhando as sombras na minha parede, quase não tenho conversado com as aranhas no meu teto. Estou quebrado. Talvez eu sempre estivesse, mas só tenha reparado isso agora.
                Corro na direção oposta. Juro que corro, tenho tentado fazer o certo, mesmo que não pareça.
                As coisas pioraram muito.
                No início eu só queria ser um sujeito simples, desses que usam o telefone público, brincam com os cachorros da vizinhança, comem salada todos os dias, raramente bebem e passam horas na praça sentindo o sol na pele, porém, algo no caminho parece ter dado errado. Tenho me sentido estúpido, sei que as pessoas podem ser cruéis, e elas quase sempre são, confesso que ando com medo de encarar minha alma. Talvez, dessa vez, os danos sejam irreparáveis.
                Percebo meus ossos cada vez mais duros, angulosos. Uma vez, há muito tempo, eu lidei bem com ângulos, hoje tenho vontade de quebrá-los.
                Essa maré de azar e todo esse julgamento alheio finalmente me atingiram. Acho que vou abraçar o senso comum, no fundo talvez eu seja uma pessoa ruim, como dizem por aí. Vou religar os sinais luminosos que avisam que sou prejudicial e pelo visto vai ser um longo outono.



                Não queria assumir, mas estão finalmente conseguindo quebrar meu espírito. 

2 de maio de 2014

A boa luta

                É a minha vida, apesar de todas as escolhas erradas não quero ser acordado depois que tudo acabar, que setembro passar. Quero sentir tudo. Mesmo que signifique perder amigos, me afastar da família, envelhecer aos vinte e três, não ter dinheiro suficiente para o aluguel, beber vinhos baratos, esfriar corações quentes.
                Quero desafiar os deuses, dizer “não” a ordem vigente.
                Minha responsabilidade não é com a submissão, por mais que eu passe, sempre, um bom tempo no escuro e enxergue pouco, ou quase nada de luz. Não quero glória ou fama, elas não servem para nada, a cada dia que passa fabricam mais dinheiro, e ele tem me valido cada vez menos.  
                Eu quero mais.
                Quero a minha vida, inteira, minha.
                Mesmo que signifique perder a família, amigos, empregos, mesmo que eu tenha que matar quem eu fui e quem já quis ser. Talvez funcione para você, mas os deuses nunca quiseram nada que me agradasse. Não quero ser mesquinho ou presunçoso. Inclusive, boa sorte para você que escolheu o caminho mais fácil, ele sempre me pareceu mais difícil.  
                Sei que não posso vencer a morte, mas vou fazer todo meu caminho mesmo assim. Não quero piscar os olhos e descobrir que fiquei velho e arrogante a ponto de pensar que idade significa sabedoria, experiência. Não vou me silenciar por obrigação, respeito é um termo cujo significado muda a cada instante e eu terei liberdade suficiente para me contradizer, os deuses querendo ou não.    
                Me recuso a ser refém do medo.


                Não é pedir muito, só quero achar quem sou. No fundo só peço a minha vida, até porque ela está acabando mais rápido do que eu esperava.

28 de abril de 2014

De duas até sete

                Levantei, estiquei as costas. Não quis abrir a porta da varanda. Tive medo do que ia encontrar. Não estava pronto para ver um sol radiante, um céu azul, nuvens brancas. Não hoje. Não este mês.
                Cocei as costas. Passei a mão na nuca, senti meus pelos do braço arrepiar. Encaro o calendário.
                Falta muito.
                Nunca desejei tanto o fim.
                Juro que já me assustei com o fim do mês, da semana, de namoros, amizades, da vida. Assim como já tive medo do escuro e de vacas, andar a cavalo e sair à noite. Não sei se isso é crescer. Não quero pensar e pesar decisões. Não hoje.
                Hoje eu quero um café, forte, quente, sem açúcar. Puro, como um dia as coisas foram. Quero ficar na sombra, beber cervejas geladas, deitar na rede e encarar um céu cinza, opaco. Espero pelo dia que eu possa simplesmente me abster do mundo, de pessoas, sons, cheiros.
                Um tempo que ficarei completamente só.

                Mesmo que por um dia.   

20 de abril de 2014

Sexta-feira da paixão





                Diga alguma coisa, qualquer coisa. Você está me perdendo. Seu silêncio tem me matado, venho tentando preencher sua falta com trabalho e não tem dado certo. Já te mostrei do que sou capaz e repara bem, não te pedi para fazer nada.        
                É só falar.
                Não quero mais ficar só, nem me sentir menor do que já sou. Cansei de correr atrás do seu rastro, de mendigar sua atenção. Orgulho já não existe, o prazer aos poucos se acabou. Espero que nunca precise saber como é rastejar por alguém.  
                Sempre foi difícil desistir. Fiz isso poucas vezes em minha curta vida, até então estou aprendendo a desapegar, deixar ir. Mas ainda há tempo, dá para mudar. Diga alguma coisa que me faça abandonar essa idéia, algo que me faça pensar que isso não foi uma péssima escolha.
                Já engoli minha pretensão e agora eu estou desistindo de você.
                Desculpa pelo tempo que te fiz perder e por nunca ter despertado nada profundo. Espero não ter deixado cicatrizes, você nunca foi como as outras, talvez até merecesse uma ou outra, eu é que jamais conseguiria te fazer algum mal. Uma pena não ser forte o suficiente para continuar a luta. Graças ao bom Jeová que os outros da sua vida nunca precisaram desprender tanta energia quanto eu para estar presente.
                Você nunca quis fazer nada e é claro que vou sentir falta dos seus olhos, aliás, já aprendi a me controlar sempre que encontro alguém com um perfume igual ao seu. Acho que finalmente me cansei de arrastar essa falsa relação por aí.



                É só que no fundo eu queria apenas que você dissesse algo, qualquer coisa que me fizesse não dizer: “Tchau! Estou desistindo de você.”

13 de abril de 2014

Transtorno de conduta

                Não sou um grande fã de solenidades sociais. Dessas que te obrigam a usar terno, sapato e tudo mais. Vou, mas não são minhas favoritas.
                Quando criança, achava divertido usar roupa social, trajes de gala, sapato, camisas bem engomadas. Cresci.
                Juro que passei duas horas encarando o gelo que nadava no meu uísque. A primeira pedra derreteu rápido. Deixou aguado. A segunda relutava, tentava não se afogar, não desistir. Confesso que fiquei impressionado com a persistência dela no meu copo.
                A luz bateu nas minhas botas.
                Se uso terno, coloco minhas botas pretas. As engraxo no dia, para que fiquem brilhosas. Passam despercebidas, pelo menos na maioria das vezes.
                A luz refletiu nos meus olhos, acredito que acabei esquecendo meu copo.
                Eu sou o antissocial.
                Aquele que passa horas brincando com o cachorro na festa, porque não achou ninguém mais interessante. O que fica fazendo desenhos com a sombra, para não ter que conversar. Aquele que passa horas encarando o nada.
                Pensei que talvez fosse melhor desistir de insistir.
                Me senti como a pedra de gelo. Fadado a fracassar. Por qual motivo continuo frequentando esses lugares?
                Mas nessa noite em questão, levantei, virei meu copo de uísque aguado, comi um petisco, sorri para garçonete, coloquei uma mão no bolso e com a outra troquei o copo de bebida por um novo, cheio, sem gelo. Dois goles. Devolvi o copo, já seco, ao garçom e tomei o primeiro táxi para casa.


                Há meses que não sei o que é dormir acompanhado. Acho que as coisas continuarão assim por um bom tempo.                 

6 de abril de 2014

Cego pelo neon

                Ela entrou na minha noite. Apresentados ao acaso, nesses encontros casuais. Pensei que minha barba grande e o cabelo bagunçado seria o suficiente para afastá-la, achei que a camiseta velha e a calça surrada dariam o tom para que não se aproximasse.
                Ela se aproximou.
                Sorriu.
                Senti meus ossos tremerem, há um bom tempo não olhavam no fundo dos meus olhos e desprendiam sorrisos. Sorrisos como aqueles. Olhos como aqueles. A maneira como o cabelo negro contorna o rosto, cobre levemente algum detalhe para em instantes depois descobri-lo.  
                Sorri.
                Sinto minhas pupilas dilatarem, são doces as palavras que saem de sua boca carnuda. Mesmo assim não prossigo.  Como levo uma mulher dessas para minha casa? A geladeira vazia insiste em congelar a garrafa de água, essa que é a única filtrada da casa. Ultimamente preciso tirá-la meia hora antes de sentir sede, só assim o gelo derrete. Acabando aqueles dois litros voltarei feliz a água que me oferecem com fartas doses de cobre pela torneira.
                O congelador esboça, por entre o branco gelado, alguma embalagem. Provavelmente de algo há muito acabado. Os saches espreitam, solitários, na porta. É a única coisa ali.
                Provavelmente ela diria:
- Tem algo pra comer?
- Olha, mulher, costumava ter...
- Algo além de cerveja e uísque?
                E se mesmo assim nos amassemos:
- Vou usar seu banheiro.
- O chuveiro não é bom – eu diria –  queimou semana passada.
                Quem poderia julgá-la, caso ela se levantasse, recolhesse suas peças de roupa, espalhadas pelo pequeno apartamento, vestindo-se sem olhar para trás, talvez me desse um beijo pelo esforço na noite anterior, então, iria embora. Como todas foram. Por mais que seu sorriso entrasse nas minhas pupilas, mesmo que suas belas orelhas casassem com seus olhos e seu rosto não saísse da minha cabeça.
                Talvez fosse o ácido de má qualidade, a cerveja quente, o rum gelado.


                Mas se eu tive medo de deixar essa mulher entrar no meu apartamento, como a deixaria entrar na minha vida? 

2 de abril de 2014

Pote de ouro

                Não espero recompensa. Já esperei. Quando criança, era o que mais fazia. Esperava ser bem tratado por não ter dado má resposta, um elogio por não ter deixado comida no prato, um cafuné por ter limpado a merda do cachorro.
                Durante a adolescência, fui um pouco mais seletivo.
                Talvez tenha aprendido na infância. Tentei o prêmio pelo mau comportamento. Bebidas, narcóticos, brigas, roupas surradas. Claro que ganhei um pouco de atenção. Nada satisfatório.
                As perdas foram aumentando.
                Subtraí amigos e amores, na medida em que cresci. Por mais presente que a morte esteja, há sempre o baque inicial. Aquele vazio, a lágrima que começa a se formar nos olhos, mas que alguns anos de péssimas escolhas impedem que desça. Minha cabeça grita: “Por favor!...”
                Depois de alguns golpes a gente aprende a apanhar.
                Não faz sentido dificultar a vida dos outros só porque a sua não está simples. Perder pessoas queridas te faz lembrar que você é humano. Depois que se abre mão do senso de justiça, os dias ficam mais claros e as noites mais densas. Passei a valorizar meu ninho de concreto, meus banhos gelados, o ar da chuva, as conversas e o gole de uísque no fim do dia.
                Descobri que algumas pessoas precisam ser felizes para viver, eu não.

                Acho que se estou vivo até hoje é porque algo tem dado terrivelmente certo. Mesmo que em momentos de imprecisão minha cabeça continue a gritar: “Seja forte! Por favor...” Nessas horas, respiro fundo e a consolo dizendo: “Calma! Não sabe que nós ainda faremos um grande percurso juntos?”

30 de março de 2014

Entre estrelas

                Antigamente eu costumava controlar meus problemas. Jogava a culpa em outra pessoa e tentava viver bem. Conseguia ir longe assim. Pensava que não precisava de ajuda para seguir em frente. Acreditava que estava certo e que nunca precisaria prestar contas a um poder maior que eu.
                Não tinha consciência.
                Um dia acordei.
                Isso fez com que me sentisse duas vezes mais só. Eu vi pessoas com sua fé cega, seus punhos cerrados. Vi discursos estruturados como diamantes. Para mim, ainda pareciam frágeis como cacos de vidro.  Levantei e olhei em volta. Nunca me livrei dos meus problemas, eles sempre estiveram aqui e agora estão piores do que nunca. Me sufocam, impedem que eu grite por ajuda. Tenho tentado acreditar em um poder maior do que eu.
                Estou tentando dar uma chance a isso.
                Mas de repente as coisas mudaram. Sinto como se perdesse o rumo, piorei as situações, perdi a esperança. Vejo minhas pernas tremerem. Tenho certeza que para outros é mais simples se manter em pé, até mesmo se levantar.
                Respiro fundo, quatro vezes. Olho o céu, tento entender o que seria esse poder maior que eu. Nada. Talvez um dia. Hoje eu sei que preciso de ajuda para seguir em frente. Quem sabe o que pensarei amanhã...

                É claro que em algum lugar deve existir um jeito mais fácil, só não é o meu jeito. 

Desabafo

                Eu sou o cão que corre constantemente atrás de carros, mesmo sem saber o que fazer com eles caso os alcance. Sou aquele presente que você não gosta e busca trocar por algo melhor.
                Eu sou a úlcera que sangra a cada crise nervosa.
                Sou o tempo gasto com gente desinteressante, emprego medíocre, lugares banais. Devem a mim a expressão: “Murro em ponta de faca”. Eu sou o desastre que mata milhões e poupa um, a esperança diante de um futuro ferrado.
                Eu sou o escravo da tristeza, aspirante a merda nenhuma. O motivo do mundo dar errado, a semente de ódio que se recusa a vingar, o leite prestes a talhar.
                Sou a munição que se recusa a explodir, aquele que a consciência acusa, a voz que te impede de dormir, o frio no seu colchão quente, a unha que insiste em encravar.


                Eu sou a vida desperdiçada. 

23 de março de 2014

Não era pra ser



                O que você faria se perdesse aquela pessoa que sempre esteve com você? Esteve ali sem que fosse preciso mover uma palha. Essa pessoa que lutou incessantemente por uma chance, um momento. Criando, do nada, oportunidades.
                Se eu te disser que ela pode estar cansada?
                Que em algumas das vezes que te ligou foi pensando em dar um basta, mas depois de ouvir sua voz, caiu na real sobre como chato o futuro seria sem você. Eu sei que você quer mais. O que tratam como fuga, pode ser sua maneira de correr atrás. Sei que ele é só mais um garoto, desses que nunca pegou fundo no seu coração.
                Depois de um tempo levando pancada o couro endurece, ele sabe.
                Você pode não ter percebido que cada ação sua afeta alguém, um mundo. Tenta pisar fora da sua zona de conforto, se não for pedir muito, olhe em volta, respira fundo. Vê se consegue enxergar o mundo por outros olhos. As situações por outro ângulo. Talvez, para você, os sentimentos não signifiquem muito.
                Esquece a máxima de Antoine de Saint-Exupéry, não, você não é responsável por alguém, por algo ou situação além de você mesma. Se os sentimentos de outro não são grande coisa para você, não se sinta culpada. Algumas pessoas sofrem da síndrome de Dom Quixote. Não há muito que fazer com elas.
                Ele não fará drama, nem cena. Juro que não. Acreditaria em mim de primeira se soubesse o número de vezes que ele mordeu a própria língua só para não externar o que se passava por dentro. Não há ninguém na vida dele além de você. Nunca teve. Mesmo que para você os sentimentos não sejam lá grande coisa. Ele ainda lembra das noites em que dirigiam sem rumo, nada além dos faróis, as estrelas e o som do carro ligado.
                Talvez, algum dia, você sinta falta disso, dele.
                 É pouco provável, mas é possível.
                Mesmo que, para ele, essa coisa de sentimentos seja mais que o suficiente para continuar tentando. Por mais que suas vizinhas digam: “É só mais uma garota” e os amigos reforcem: “Não a deixe te afetar tanto. Não está na hora de você seguir em frente?”
                Às vezes ele pensa em acabar com tudo. Em diferentes momentos já concordou com eles. Pensou que estaria melhor só, que o mundo é um lugar imenso e ela talvez seja só mais uma garota. Mas, para ele, os sentimentos são mais do que um bom motivo para não desistir.

                E você, o que faria se, finalmente, depois de tantas tentativas, conseguisse perder essa pessoa?


                 

17 de março de 2014

Talvez amanhã

                Acordei bem cedo no último domingo. Tentei pressionar minha cabeça para ver se a dor diminuía.
                É bem uma tradição. Sempre que perco o sono no domingo, me levanto, coloco Stereophonics, pego uma cerveja e vou até a varanda. Não é minha banda favorita, mas me faz lembrar de coisas que perdi. Combina com manhãs dominicais.
                 Fico ali parado. Olhando o céu azul. É impressionante a proximidade das nuvens nessa cidade.              Entre um gole e uma brisa, lembro de como fui idiota e de quão humana ela é.
                A cerveja que tomei como café da manhã estava tão boa que acabei pegando outra. Aos poucos o mundo vai se levantando. O barulho do rádio no vizinho, com algum padre ou pastor confortando corações com a palavra do Senhor, ecoa até que as panelas comecem a dar sinal de vida.
                O cheiro do frango assando na padaria da esquina tempera o ar, se mistura ao feijão que cozinha em alguma casa na redondeza. O sol alcança meu rosto. Há dias que não o encontrava. É bom sentir algo quente em mim.
                Fecho os olhos. Busco o silêncio em meio ao caos.
                É nessa hora que eu vejo o rosto, os olhos, a franja nova que a deixou mais linda. O contorno das costas, os músculos do pescoço se contraindo, a veia que pulsa levemente, a coluna. O cheiro do perfume misturado à pele. O gosto da boca dormida. O som some aos poucos. A única coisa que escuto são as palavras dela, o sotaque melódico que acaricia meus ouvidos, a voz gostosa até quando me dá bronca. O jeito como desvia o olhar do que faz para focar em mim, fazendo com que eu me sinta o escolhido, aquele que vai até o final. A luz que rompe minhas pálpebras me lembra de como os raios de sol deixam os olhos dela mais claros, dos movimentos que a pupila faz se dilatando enquanto eu me aproximo.
                Tento manter a sensação que ela traz estando perto.
                É difícil ser bom. Ela faz parecer tão fácil, tão natural. Simples.
                Abro os olhos, penso no que tenho que fazer. O dever chama. Entro, fecho as cortinas e escoro a porta da varanda. Meu apartamento aos poucos volta a ficar frio. Já não ouço os vizinhos, não sinto cheiro da comida, desligo meu som, termino minha cerveja. Jogo o celular na cama, pego um livro.  


                Hoje eu não penso mais nela. Talvez amanhã. Hoje não.  

14 de março de 2014

Sabe que horas acaba?



                Já conheceu alguém incrível? Logo de cara você sabe que tem algo de especial nela, mesmo que tenha ouvido primeiro a voz, prestado atenção nos lindos olhos ou, quem sabe, na maneira como o piercing no nariz dela reflete pequenos fechos de luz, iluminando todo o rosto.
                Encontrou alguém assim, alguma vez, em toda a sua vida?
                Eu sempre fui muito travado com mulheres. Praticamente nunca dou o primeiro passo. Mas aí você conhece uma dessas pessoas. Uma, em meio a centenas de novas pessoas.Você a vê se afastar do mundo, sentar isolada em algum ponto. As mãos ameaçam transpirar, o seu coração bate incessante.
                Não há outra alternativa.
                Você tem que falar com ela. É obrigado a se aproximar, por mais que os músculos das pernas se tensionem a cada passo, a respiração se descompasse com a proximidade, a cabeça se esqueça de absolutamente tudo. Nada em mente. Nenhum assunto. Branco.
                Ela estava só.
                Agora lá está você, sentado ao lado dela. Coluna ereta, arriscando um engasgado: “Oi?”. Ela não é como as outras, a conversa flui. É constrangedor a maneira como você se coloca, mas ela ri. Gargalha baixinho para não atrapalhar aqueles que prestam atenção na palestra. Você gesticula, relaxa as costas, escorrega um pouco pela cadeira.
                No meio da conversa já se sentem íntimos a tal ponto que você se esquece que ela acabou de te conhecer. Não são todas as pessoas do mundo que aceitam que você passe o nariz no ombro delas. É uma mania irritante sua, ela tenta fechar a cara, tenta dizer não, mas acaba cedendo.
                Vocês se aproximam mais, sua timidez parece ir embora com o calor que emana do corpo dessa mulher. Você se esquece que está careca, que sua moto está sem gasolina e que o caderno novo dela não deveria ser usado para jogar pontinhos e fazer desenhos aleatórios, se esquece do auditório cheio, da palestra, da sua namorada. Naquele instante só existem vocês dois.
                Ela é especial.


                Quando conhecemos alguém incrível, é preciso fazer alguma coisa. Creio que seria o maior pecado do mundo deixá-la ir sem ter me esforçado pelo menos um pouco. 

12 de março de 2014

Ainda que eu caminhe...

                Maldito desenho que não começa. O pastor me lê alguns versículos, fala de amor, acho que é Paulo ou Coríntios. Parece coisa de casamento. Diz que o fogo sagrado será implacável, irônico como foi rápido do amor a fúria.
                Parece as mulheres da minha vida.
                Ponho a tv no mudo. Maldito desenho que não começa. Pego primeiro Lp, me sirvo uma dose farta de uísque. Lado B de Blood on the tracks. Como alguns amendoins, encaro a roupa suja. Bebo outra dose. Olho a tv e me pergunto: Como ele fala tanto sem beber água?
                A câmera capta gotas de saliva voando da boca, como um cão raivoso, prestes a espumar. Se está assim no meu aparelho, imagina em alta definição. É a única hora que se vê pessoas de verdade na tv. Quando passam pela plateia você enxerga aquela sua tia de quarto grau e o marido alcoólatra na quinta fileira.
                Outra dose.
                Terceira faixa, lado b. Dylan. Sabe?! É o hino dos corações partidos. Sigo até a varanda, penso no cigarro, corro das lembranças, evito o sofá que ela amontoava sua bagagem, não olho a cama, nem a pia da cozinha. Faço a dose durar. Desce rasgando. Cada gole é como um punho que vem cerrado garganta adentro. Busco entender, já quis aceitar. Hoje eu questiono o motivo de tanta distância, tanto gelo.
                Mas a música acaba, o desenho começa.

                Talvez seja um sinal. Quem sabe não é hora de trocar a faixa, mudar o roteiro. Só para variar um pouco.