Já
contava pouco mais de um mês desde que havia pisado pela ultima vez no tatame.
Sentia falta, muita falta. É difícil lidar com toda essa raiva acumulada e de
uns tempos para cá minhas mãos tremiam incessantes. Descargas de adrenalina se
tornaram comuns e eu estava mais irritado que o normal.
Sabia
exatamente o que era preciso ser feito.
Esse
semestre está caótico, muito trabalho, pouca diversão. Responsabilidade demais
acaba com o homem. Estava sem tempo até para mulheres, talvez isso explique os
textos melancólicos. O fato é que mandei toda burocracia que me deprimia para
o inferno, peguei minhas luvas e fui para academia.
Devo
ter chegado por volta de sete. O pior horário da terra. Depois das cinco da
tarde a academia fica lotada, pessoas se apossam dos materiais e começam a
bater papo. Eu sempre fui muito direto. Cheguei, fiz, fui embora. Nada de
embromar e hoje precisava descarregar. Como uma arma que não aguenta mais
munição, esse era eu. Olhei para o tatame, suspeitava que Ítalo estaria lá. Ele
sempre está.
Ítalo é
um filho da puta que mede cerca de dois metros e dez centímetros, tem duzentos e
quinze quilos de puro músculo. O rapaz não sabe treinar, isso já é confirmado.
Ele leva muito a sério todos os sparrings e essa noite estava no tatame. Já era
figura carimbada na academia, só os novatos se atreviam com ele, os coitados
saíam com o nariz quebrado, na melhor das hipóteses. Por ironia do destino, meu
horário nunca bateu com o dele. Pelo menos até hoje.
Me
sentia motivado.
A falta
de amor a vida me deu coragem, o tempo longe do ringue mudou algo. Aqueci e fui
à beira de onde as lutas ocorriam, reparei sua técnica enquanto colocava minhas
bandagens. Não é segredo, ele desprende muita energia de início, acaba se cansando rápido.
Faz parte da história da humanidade, até o bom
Jeová apreciava lutas e eventualmente apostava nos azarões. Olha o pequeno
Davi, se não fosse sua técnica, e um pouco de sorte, Golias jamais teria
sucumbido, sem falar de Daniel e todos aqueles leões. As pessoas gostam do
impossível.
Ítalo
pode levar vantagem por ser maior e mais forte, mas eu sou mais rápido.
Respirei.
Jogar fora
o ar sujo é essencial, é vital ficar leve antes de qualquer confronto. Esvaziar
a mente pode ser o que vai salvar sua vida na hora do aperto. O cara não tinha
piedade, eu seria uma presa fácil. Uma coisa que pessoas altas treinam pouco são golpes de
curta distância. Compensam essa falha com bases bem estruturadas, seria dureza
derrubá-lo.
Olha, chefia, lutar é igual
viver. A vida vai bater sem dó, resta a você decidir quais golpes levar. Eu
sabia que com ele seria assim.
Começamos.
Eu, um
Davi de um e oitenta e cinco, sessenta quilos. Ele, um Golias de dois metros e
uns poucos centímetros, duzentos e alguns quilos.
O ar
entra e sai pelas minhas narinas. Abrir a boca pode significar dizer adeus aos
dentes, e além do mais, é bom manter um ritmo para respiração. Ela faz toda
diferença no resultado final. Dancei com ele pelo tatame por alguns minutos,
não conseguiu me acertar um golpe sequer. Nem mesmo uma simples canelada. Sentia
que suas mãos estavam começando a pesar, ele já não conseguia manter a guarda
alta. Ótimo. Precisava me aproximar, levei um cruzado de esquerda e desviei do
gancho, a joelhada passou raspando, enquanto encurtava a distância sentia o
sangue preencher minha boca. Acertei um soco na altura das costelas, os braços
abaixaram, a boca do estomago era minha e o rosto também.
Primeiro
você acaba com a capacidade de respirar, dois socos, um no centro e outro na
lateral do abdômen. Sem isso ele se cansa mais rápido, a guarda não vai ser tão
eficaz. A base ainda está firme, mais alguns golpes na lateral e o chão será seu destino. Estar certo as vezes é maravilhoso. Garanto que nunca acertei
um rodado com tanto gosto na cabeça de alguém como fiz essa noite.
Foi um nocaute memorável na história da academia.
O bom
de lutar é não pensar em nada. Juro que minha mente estava vazia, meus olhos
focavam nas oportunidades. Pela primeira vez eu percebi o potencial da raiva, o
alcance que a falta ou o excesso de controle tem.
Guardei
minhas coisas, desenrolei lentamente a bandagem enquanto Ítalo se recuperava,
limpei o suor da testa e troquei de camiseta. Tomei um belo gole de água e
sangue. Caminhei rumo à porta. Ouvi enquanto saía: “Boa luta, cara! Vou querer
revanche...”
Por mim
tudo bem, mas não hoje. Agora eu só quero uma cerveja.