Sem mas.

Sem mas.

25 de maio de 2014

Não é ilusão

1.      Mutualismo: Duas espécies são beneficiadas e podem viver independentemente ou trocar de parceiro.


           É quando dois indivíduos encontram- se e se reconhecem quase que de imediato. É obvio que ambos poderiam viver tranquilamente longe um do outro, mas escolhem não o fazer.
           Vão correr um ao lado do outro. Apesar de todo medo, de toda bagagem, apesar de todos os traumas e paranoias, manias irritantes e saudades absurdas.  
            Não é parasitismo.
           Mutualismo não é ilusão, não é como se falássemos de amor e fadas. Ela acaba sendo o combustível dele e ele a salvação dela. Quando dizem sim, mesmo que sejam de espécies diferentes, os dois seguem e saram toda dor um do outro.
           Ela é desse tipo que aparenta ser patrocinada por todas essas marcas caras, Apple, Carolina Herrera, Chanel e até mesmo a armação dos óculos parece ter saído de um catálogo de moda. Ele ainda tem a mesma jaqueta de couro a pouco mais de cinco anos e umas duas calças jeans, que costumavam ser azul, a coisa mais cara que possui é um uísque importado, presente de aniversário de uma amiga desavisada. Mesmo tão opostos, se reconheceram dispostos a preencher o vazio um do outro.

           Essa é a graça do mutualismo. Ele foi, durante muito tempo, como aquele enfeite no quarto dela enquanto ela não passava de um sonho bom, até que resolveram viver lado a lado. Já estiveram separados, porém os benefícios de quando estão juntos é algo que não se pode abrir mão com tanta facilidade assim. 

18 de maio de 2014

Não devia, mas fiz mesmo assim.

                Eu deveria ter ficado em Catalão. Nunca devia ter saído da psicologia, se bem que não devia nem ter começado o curso. Podia ter feito medicina ou alguma engenharia, pena eu não ser arrogante o suficiente.
                Deveria ter apostado no seguro, ficado naquela cidade lenta, mesmo que eu me sentisse tão depressa.
                Não devia ter me deixado por aí. Você nunca teria me encontrado, se eu tivesse ficado quieto na minha. Pode parecer que eu não me importo, e às vezes não me importo mesmo. Inclusive tem dias que eu não quero saber de me achar. Nunca teria dado certo na engenharia.
                Eu não devia ter aberto minha vida para aquela ex. Não devia ter deixado que visse a bagunça. Ela entrou, pegou o que queria e foi embora. Não me achou em meio aos destroços,  cobertores e filmes. Deve ter ficado com medo das fotos e garrafas vazias espalhadas por aqui.
                Já passou por algo assim?
                Eu não devia deixar outra pessoa entrar, mas estou fazendo mesmo assim. Talvez ela seja mais uma que não vai me encontrar por aí, pode ser que seja do mesmo tipo da outra. É que eu apenas vejo tanta vida pela frente, tanto para tirar do papel.
                Eu não deveria te procurar no fim do dia, contar histórias que não conto para ninguém e que você não quer ouvir. Escrever coisas que você nunca vai ler.
                Eu devia me proteger mais.
                Juro que estou repensando se devia me deixar por aí, esperando um dia em que a vida vai deixar os contratempos para depois e você, estando só, vai acabar por me encontrar de novo.

                Pena você desatar todos os nós que insisto em criar. 

11 de maio de 2014

Como água

                Já contava pouco mais de um mês desde que havia pisado pela ultima vez no tatame. Sentia falta, muita falta. É difícil lidar com toda essa raiva acumulada e de uns tempos para cá minhas mãos tremiam incessantes. Descargas de adrenalina se tornaram comuns e eu estava mais irritado que o normal.
                Sabia exatamente o que era preciso ser feito.
                Esse semestre está caótico, muito trabalho, pouca diversão. Responsabilidade demais acaba com o homem. Estava sem tempo até para mulheres, talvez isso explique os textos melancólicos. O fato é que mandei toda burocracia que me deprimia para o inferno, peguei minhas luvas e fui para academia.
                Devo ter chegado por volta de sete. O pior horário da terra. Depois das cinco da tarde a academia fica lotada, pessoas se apossam dos materiais e começam a bater papo. Eu sempre fui muito direto. Cheguei, fiz, fui embora. Nada de embromar e hoje precisava descarregar. Como uma arma que não aguenta mais munição, esse era eu. Olhei para o tatame, suspeitava que Ítalo estaria lá. Ele sempre está.
                Ítalo é um filho da puta que mede cerca de dois metros e dez centímetros, tem duzentos e quinze quilos de puro músculo. O rapaz não sabe treinar, isso já é confirmado. Ele leva muito a sério todos os sparrings e essa noite estava no tatame. Já era figura carimbada na academia, só os novatos se atreviam com ele, os coitados saíam com o nariz quebrado, na melhor das hipóteses. Por ironia do destino, meu horário nunca bateu com o dele. Pelo menos até hoje.
                Me sentia motivado.
                A falta de amor a vida me deu coragem, o tempo longe do ringue mudou algo. Aqueci e fui à beira de onde as lutas ocorriam, reparei sua técnica enquanto colocava minhas bandagens. Não é segredo,  ele desprende muita energia de início, acaba se cansando rápido.
                 Faz parte da história da humanidade, até o bom Jeová apreciava lutas e eventualmente apostava nos azarões. Olha o pequeno Davi, se não fosse sua técnica, e um pouco de sorte, Golias jamais teria sucumbido, sem falar de Daniel e todos aqueles leões. As pessoas gostam do impossível.
                Ítalo pode levar vantagem por ser maior e mais forte, mas eu sou mais rápido.
                Respirei.
                Jogar fora o ar sujo é essencial, é vital ficar leve antes de qualquer confronto. Esvaziar a mente pode ser o que vai salvar sua vida na hora do aperto. O cara não tinha piedade, eu seria uma presa fácil. Uma coisa que pessoas altas treinam pouco são golpes de curta distância. Compensam essa falha com bases bem estruturadas, seria dureza derrubá-lo.
                Olha, chefia, lutar é igual viver. A vida vai bater sem dó, resta a você decidir quais golpes levar. Eu sabia que com ele seria assim.
                Começamos.
                Eu, um Davi de um e oitenta e cinco, sessenta quilos. Ele, um Golias de dois metros e uns poucos centímetros, duzentos e alguns quilos.
                O ar entra e sai pelas minhas narinas. Abrir a boca pode significar dizer adeus aos dentes, e além do mais, é bom manter um ritmo para respiração. Ela faz toda diferença no resultado final. Dancei com ele pelo tatame por alguns minutos, não conseguiu me acertar um golpe sequer. Nem mesmo uma simples canelada. Sentia que suas mãos estavam começando a pesar, ele já não conseguia manter a guarda alta. Ótimo. Precisava me aproximar, levei um cruzado de esquerda e desviei do gancho, a joelhada passou raspando, enquanto encurtava a distância sentia o sangue preencher minha boca. Acertei um soco na altura das costelas, os braços abaixaram, a boca do estomago era minha e o rosto também.
                Primeiro você acaba com a capacidade de respirar, dois socos, um no centro e outro na lateral do abdômen. Sem isso ele se cansa mais rápido, a guarda não vai ser tão eficaz. A base ainda está firme, mais alguns golpes na lateral e o chão será seu destino. Estar certo as vezes é maravilhoso. Garanto que nunca acertei um rodado com tanto gosto na cabeça de alguém como fiz essa noite.
                Foi um nocaute memorável na história da academia.
                O bom de lutar é não pensar em nada. Juro que minha mente estava vazia, meus olhos focavam nas oportunidades. Pela primeira vez eu percebi o potencial da raiva, o alcance que a falta ou o excesso de controle tem.
                Guardei minhas coisas, desenrolei lentamente a bandagem enquanto Ítalo se recuperava, limpei o suor da testa e troquei de camiseta. Tomei um belo gole de água e sangue. Caminhei rumo à porta. Ouvi enquanto saía: “Boa luta, cara! Vou querer revanche...”
                Por mim tudo bem, mas não hoje. Agora eu só quero uma cerveja.  
                 


7 de maio de 2014

Boa noite, Margarida

                Pois bem, Margarida, eu avisei que o fim aconteceria. Eu não o queria. Não aquele fim. Veja que o arco-íris não mudou de cor, a gasolina subiu de preço e as flores já desabrocharam. Você esqueceu meu endereço.
                Fim. Eu não queria aquele fim.
                Não trocamos mais olhares em apartamentos, nem mensagens. Você teve outros, eu fiquei só. Não há mais almoços despretensiosos, ou cafés da manhã preguiçosos. Eu era o real, você a fantasia. Sem beijos com gosto de suor, não há mais sexo no sofá, seriados, pizzas. Você não quer mais me ver.
                Não reparei, mas as flores já desabrocharam.
                Meu tempo está chegando ao fim, é preciso sair, arrumar meio nessa amarga vida. Mas veja você, o arco-íris não mudou de cor, não há mais beijos de suor, nem camas repartidas, sem discussões políticas e banhos quentes.
                Foi o fim.
                Não o fim que queria, mas ainda sim, vou esquecer seu endereço e a gasolina vai cair de preço. Talvez eu tenha outros começos, mas vou sempre me lembrar do fim. O nosso fim.
                Eu vou partir.
                Não há garantias, nem meios, mas vou tentar curar essas feridas.

                Margarida, juro que curarei essas feridas da amarga vida, mesmo que você não mais se lembre de mim, do nosso fim.  

4 de maio de 2014

Nocivo

                Agora é sério. O problema é definitivamente comigo. Tenho passado pouco tempo olhando as sombras na minha parede, quase não tenho conversado com as aranhas no meu teto. Estou quebrado. Talvez eu sempre estivesse, mas só tenha reparado isso agora.
                Corro na direção oposta. Juro que corro, tenho tentado fazer o certo, mesmo que não pareça.
                As coisas pioraram muito.
                No início eu só queria ser um sujeito simples, desses que usam o telefone público, brincam com os cachorros da vizinhança, comem salada todos os dias, raramente bebem e passam horas na praça sentindo o sol na pele, porém, algo no caminho parece ter dado errado. Tenho me sentido estúpido, sei que as pessoas podem ser cruéis, e elas quase sempre são, confesso que ando com medo de encarar minha alma. Talvez, dessa vez, os danos sejam irreparáveis.
                Percebo meus ossos cada vez mais duros, angulosos. Uma vez, há muito tempo, eu lidei bem com ângulos, hoje tenho vontade de quebrá-los.
                Essa maré de azar e todo esse julgamento alheio finalmente me atingiram. Acho que vou abraçar o senso comum, no fundo talvez eu seja uma pessoa ruim, como dizem por aí. Vou religar os sinais luminosos que avisam que sou prejudicial e pelo visto vai ser um longo outono.



                Não queria assumir, mas estão finalmente conseguindo quebrar meu espírito. 

2 de maio de 2014

A boa luta

                É a minha vida, apesar de todas as escolhas erradas não quero ser acordado depois que tudo acabar, que setembro passar. Quero sentir tudo. Mesmo que signifique perder amigos, me afastar da família, envelhecer aos vinte e três, não ter dinheiro suficiente para o aluguel, beber vinhos baratos, esfriar corações quentes.
                Quero desafiar os deuses, dizer “não” a ordem vigente.
                Minha responsabilidade não é com a submissão, por mais que eu passe, sempre, um bom tempo no escuro e enxergue pouco, ou quase nada de luz. Não quero glória ou fama, elas não servem para nada, a cada dia que passa fabricam mais dinheiro, e ele tem me valido cada vez menos.  
                Eu quero mais.
                Quero a minha vida, inteira, minha.
                Mesmo que signifique perder a família, amigos, empregos, mesmo que eu tenha que matar quem eu fui e quem já quis ser. Talvez funcione para você, mas os deuses nunca quiseram nada que me agradasse. Não quero ser mesquinho ou presunçoso. Inclusive, boa sorte para você que escolheu o caminho mais fácil, ele sempre me pareceu mais difícil.  
                Sei que não posso vencer a morte, mas vou fazer todo meu caminho mesmo assim. Não quero piscar os olhos e descobrir que fiquei velho e arrogante a ponto de pensar que idade significa sabedoria, experiência. Não vou me silenciar por obrigação, respeito é um termo cujo significado muda a cada instante e eu terei liberdade suficiente para me contradizer, os deuses querendo ou não.    
                Me recuso a ser refém do medo.


                Não é pedir muito, só quero achar quem sou. No fundo só peço a minha vida, até porque ela está acabando mais rápido do que eu esperava.