Sem mas.

Sem mas.

29 de junho de 2014

Céu, sol, sul.

                Meu avô costumava trabalhar como operador de sondas em uma mineradora no interior de Goiás. Durante boa parte da infância eu, que era seu vizinho, esperava sua chegada. Por volta das cinco e meia da tarde, ele descia da Kombi branca encardida, com sua garrafa térmica de café e outra de água embaixo dos braços, um cigarro pendurado na boca e as botas cheias de terra. Passava por mim, colocava o cigarro entre os dentes e esboçava um sorriso.
                Era engraçado. Dos netos sempre fui o que menos recebia ofensas, chineladas e palavrões. É que na verdade eu nunca os recebia. Isso era privilégio dos outros. Comigo a coisa era diferente. Nossa relação se baseava em chá mate aos domingos de manhã, chimarrão nas calçadas durante os sábados de inverno, piadas sujas e lições sobre como preparar um bom churrasco ao som de Borghetti.
                Ao contrário da minha vó, ele perdeu cedo o sotaque gaúcho. Só não perdeu os costumes. Apesar de não ter metade do indicador, amolava facas como ninguém, ainda hoje não achei alguém tão bom quanto ele no violão e é certo que a voz grave, rouca por conta dos cigarros, ajudava a dar um tom interessante aos boleros que saíam daquele velho instrumento. Nada vence a supremacia do tempo que não perdoa ninguém, muito menos aqueles que vivem para o prazer. Meu avô era um desses homens.
                Contam em histórias, que ele era boa praça, fazia piadas e gostava de uma farra como poucos. Era do tipo mulherengo. Sempre foi alto, o trabalho ao sol lhe rendeu uma cor morena e os cabelos negros destacavam bem o rosto. Meu avô era o tipo de homem que desprendia pelo menos um olhar das moças por aí. Ele se aproveitava disso.
                Sempre me pareceu uma pessoa feliz.  
                A aposentadoria foi sua ruína, o pobre coitado passava os dias em frente à TV, com os olhos fixos, sem vida, em algum filme ruim, um programa sertanejo, eventualmente algum jogo da série B. Saía do sofá apenas para me buscar nas aulas extras que fazia, isso se fosse extremamente necessário. Acho que ele só chegou a ver uma das minhas competições no Tae Kwon Do, confesso que eu ria da maneira como ele contava que me viu batendo em alguém. Eu somava pouco mais de dez anos e presenciei o início do fim.
                Descobriu-se, agora não me lembro como, que ele desenvolveu uma doença degenerativa nos rins, aposto minha coleção de vinil que a vida desregrada é a culpada. A idade impedia de fazer o transplante, hemodiálise seria vital. Ele fez. Com o passar dos anos definhava, como um boxeador que escolhe perder, mas sem abandonar a luta. O velho agia como se merecesse a punição que estava recebendo de uma força superior. 
                Se instalou em uma tristeza deprimente.
                A família, é claro, se desesperou. Era como uma histeria coletiva. Todos em prol de uma causa perdida. Ele mesmo já havia abandonado a luta, inclusive se ainda está nela é por conta dos familiares.  Os remédios da hemodiálise, a má alimentação e a falta de atividade física fizeram com que também desenvolvesse uma doença degenerativa no cérebro, além de atrofiar os músculos.
                Hoje ele é incapaz de dar quatro passos sem cair, mas ainda fica com o olhar fixo na TV. Eu já não sou seu vizinho, há anos que me mudei, culpa de algumas escolhas que ainda não decidi se boas ou ruins. Minha ausência fez com que ele me esquecesse. Pelo menos das ultimas seis vezes que nos encontramos ele me reconheceu em apenas uma. É um pouco triste, mas no final das contas não seremos todos esquecidos?
                Desta última vez, quando estive lá, ele brigava com o fisioterapeuta. Não queria fazer os exercícios. Acabada a sessão, eu o coloquei na cadeira de rodas, levei até o banheiro e depois das formalidades fisiológicas devidamente executadas e limpas, sentamos na sala e ficamos a conversar. Ele, com muita dificuldade, divagava sobre tudo e eu, em resposta, disse que compraria uma arma de água e encheria de molho de pimenta, seria a maneira dele se proteger de chatos e médicos irritantes. Após uma breve gargalhada interrompida por uma tosse seca, ele me disse, com dificuldade, segurando uma das minhas mãos: “Seremos dois contra o mundo” e riu de novo.
                Consigo entender toda essa angustia afinal, você ficaria tranquilo se a cada dois meses um amigo de hemodiálise morresse ao seu lado?
                Hoje o violão que era dele me acompanha nas madrugadas insones, a mania do cigarro pendurado me ajuda sobreviver aos amores mal resolvidos, ainda faço churrasco como ele e mesmo que não o tenha esquecido, nunca concordei tanto com essas palavras.

                Pois é, grande homem, seremos sempre dois contra o mundo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário